BLOG – Você já ouviu falar em “futilidade terapêutica”?
Em medicina, tratamento fútil é definido como aquela ação médica cujos potenciais benefícios para o paciente são nulos ou tão pequenos ou improváveis que não superam os seus potenciais malefícios.
Infelizmente temos muitos casos desses na medicina veterinária, e muitas vezes não conseguimos nem reconhecer que estamos envolvidos em uma obstinação terapêutica, muitas vezes ditada pela vontade do tutor em manter o animal vivo, custe o que custar.
Quantas vezes já não vimos casos de animais idosos com doença renal crônica (DRC), hospitalizados e mesmo após 1 semana de fluidos intravenosos, antieméticos e estimulantes do apetite, os valores renais permanecem inalterados. O animal não se alimenta sozinho há mais de uma semana e passa a maior parte do dia em decúbito lateral, apenas levantando a cabeça ocasionalmente quando o dono o visita.
Apesar da condição do gato e do prognóstico grave, o proprietário quer que o gato continue hospitalizado e está considerando a colocação de um tubo de alimentação para fornecer nutrição.
Casos como esse são angustiantes para todos os envolvidos – o paciente, o tutor do animal, o veterinário e enfermeiros veterinários.
Hoje com tantos avanços tecnológicos que permitem cada vez mais manter um animal vivo, não devemos perguntar “se podemos fazer algo”, mas sim “se devemos fazer algo”.
Um estudo recente, intitulado “Medical futility is commonly encountered in small animal clinical practice”e publicado no Journal of the American Veterinary Medical Association procurou investigar esses casos de futilidade terapêutica nos EUA e chegou à conclusão que 99% dos veterinários entrevistados – a maioria especialistas certificados – acreditavam que cuidados fúteis ocorrem cada vez mais na medicina veterinária e 85% afirmaram ter experimentado um caso de “cuidado fútil” no ano anterior.
Devemos começar a prestar mais atenção em casos incuráveis, pois essa “obstinação terapêutica”ou “cuidado fútil” pode levar a muito sofrimento e afetar inclusive a saúde mental e o bem-estar de nossos profissionais veterinários.
Para os autores do referido trabalho – “O cuidado fútil ocorre quando não se espera que a continuação do tratamento atual ou a instituição de um novo tratamento altere o curso clínico do paciente, mesmo que tal tratamento confira algum benefício ao tutor.”
E o cuidado fútil não está restrito aos clínicos que trabalham com doenças terminais ou crônicas, que trabalham em UTI, afetam também os atendimentos ambulatoriais.
Temos que ter em mente que cuidados fúteis não são os chamados cuidados paliativos, onde o paciente se beneficia dos cuidados prestados e o tutor sabe bem sobre as limitações e sobre o prognóstico do paciente,
“Cuidados paliativos são cuidados que visam melhorar a qualidade de vida, diminuindo o sofrimento”, diz a Dra. Marie Holowaychuk, DVM, DACVECC, defensora da saúde mental e do bem-estar dos animais. “Os cuidados paliativos concentram-se no conforto e na qualidade de vida no final da vida. Acredito que os veterinários muitas vezes confundem “tratamento fútil” com qualquer cuidado que não vá mudar o prognóstico do paciente, o que não é a verdadeira definição.”
A Dr. Holowaychuk recomenda fazermos 2 perguntas para ajudar a determinar se existe um caso de tratamento fútil:
- O tratamento médico em questão não foi útil nos últimos 100 casos de literatura que li a respeito ou que presenciei?
- É provável que esse tratamento médico resulte em dependência total de cuidados médicos intensivos?
Se a resposta for SIM para uma ou ambas as perguntas, o tratamento pode ser considerado fútil ou inútil.
Lembrar que se o tratamento é útil para melhorar a vida do paciente, diminuir o sofrimento, a dor e o desconforto, ou seja, se ele é útil para melhorar o bem-estar do paciente, ele não se encaixa como SIM na resposta da pergunta 1.
Como lidar com tutores obstinados?
Mesmo quando o cuidado é reconhecido como fútil pela equipe veterinária, a decisão de continuar o tratamento, em última instância, cabe ao dono do animal.
É imperativo que todos os membros da equipe veterinária não apenas sejam capazes de reconhecer os casos como fúteis, mas também aprendam a se comunicar com sucesso com tutores, para convencê-los de que não há mais nada a fazer e o animal está sofrendo.
“Compaixão, empatia e paciência são fundamentais em meio a essas situações emocionalmente carregadas”, diz a Dra. Holowaychuk.
Muito importante entendermos as reais expectativas dos tutores, se eles entenderem bem o diagnóstico, o prognóstico, e discutir sobre qualidade de vida, cuidados paliativos, eutanásia, enfim, chegarem juntos em um consenso.
Além disso devemos ser sinceros com os tutores. Se achamos que o animal está sofrendo, que não está se beneficiando em nada da terapia, devemos dizer isso claramente ao tutor.
Mas é claro que também é muito importante demonstrarmos nossa empatia, cuidado, preocupação, e tentar sempre iniciar a conversa com “Eu também gostaria de poder tratar o câncer e as metástases da Nina, mas eu me preocupo agora com o sofrimento dela e sei que a condição dela vai piorar em breve. E por isso penso que devemos começar a pensar juntos em possibilidades de evitar maiores sofrimentos e uma delas é a eutanásia”
Em muitas situações em que existe um cuidado fútil, são necessárias muitas conversas e inclusive podemos pedir auxílio para outras pessoas da equipe veterinária, de psicólogos e até mesmo de amigos e familiares do tutor.
Como cuidar da equipe veterinária diante destes casos?
Casos de cuidados fúteis ou obstinação terapêutica criam sofrimento moral para os profissionais veterinários, que sabem no fundo que a continuidade dos cuidados não traz benefícios para o paciente, que podem na verdade prolongar o sofrimento do paciente, mas ainda assim são orientados a continuar o tratamento.
O sofrimento moral é definido como “a experiência de saber a coisa certa a fazer enquanto se encontra em uma situação em que é quase impossível fazê-la”.
O Dr. Peterson, autor do trabalho acima mencionado, reconhece que os veterinários não são obrigados a promoverem atos médicos em que não estão de acordo, mas entende que muitas vezes fica difícil negar atendimento a um animal que necessita de algum cuidado.
Ambos os Drs. Peterson e a Dra. Holowaychuk acreditam que é necessária uma conversa bem aberta com a equipe, perguntar para cada um sua opinião sobre o caso, o que cada um acha de errado ou de certo. E ainda pontua que os membros da equipe, veterinários e enfermeiros devem ser incluídos nas conversas com os tutores para que possam ouvir em primeira mão as preocupações e os objetivos do tutor.
As reuniões semanais com as equipes devem ter espaço para esse tipo de discussão aberta e sincera sobre esses casos mais difíceis, onde todos os membros da equipe tenham um lugar seguro para expressar suas emoções.
Grandes hospitais devem também investir em obter apoio permanente de um conselheiro ou profissional de saúde mental.
Importante reconhecermos juntos que cuidados/tratamentos fúteis estão ocorrendo na medicina veterinária, que eles impactam o animal, a saúde mental e emocional dos membros da equipe veterinária e o tutor., e que devemos como profissionais trabalhar para criar diretrizes éticas e apoiar nossos colegas nesses casos para uma melhora resultado que ajude nossos pacientes e nos ajude como veterinários.